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Boas,

Deixem-me começar este texto com um aviso sobre a imparcialidade do autor destas linhas no que toca ao tema em epígrafe. Sim, confesso: sou absolutamente suspeito quando o assunto são os aquários de biótopo, tal como sou absolutamente contra a hibridização de espécies, este último um tema muito na moda hoje em dia (mas que para mim é um verdadeiro atentado ao património genético dos nossos peixes, muitos deles em risco de extinção na Natureza. Defendo até que deviam ser proibidas as hibridizações em larga escala e que nós aquariófilos temos a responsabilidade de ajudar a conservar esse património genético...). Mas adiante… Um debate sobre a hibridização terá de ficar para uma outra altura... Hoje vamos centrar-nos nos aquários de biótopo, onde se juntam peixes e plantas da mesma região e se tentam recriar ao detalhe as condições que eles encontram na Natureza, criando um habitat o mais natural possível, um caminho que começou a ganhar uma nova dinâmica ao longo da última década e meia (e que pessoalmente tento seguir há mais de 35 anos).

Vem isto a propósito do projecto Biotope Aquarium, a mais recente iniciativa de Heiko Bleher, apresentada há poucos meses. Para os mais desatentos, Heiko Bleher é um investigador, autor, fotógrafo e cineasta alemão muito conhecido entre a comunidade científica pela sua contribuição para a exploração de habitats de água doce e salobra em todo o mundo (já esteve em mais de 200 países), bem como pela descoberta de muitas espécies (sendo que várias delas foram inclusivamente baptizadas com a latinização do seu nome de família). Quem de nós, aquariófilos, não ouviu já falar de espécies de peixes de água doce como o Hemmigrammus bleheri, o Leporinus bleheri, a Bleheratherina pierucciae, o Streatocranus bleheri, a Channa bleheri, o Phenacogrammus bleheri, a Moenkhausia heikoi, a Chilatherina bleheri, a Vrisea bleheri, entre vários outros? Além de várias plantas? São todas espécies que foram descobertas por Heiko Bleher ou pela sua família, pois ele pertence à terceira geração de uma família que já deu enormes contributos no campo da aquariofilia…

Para ficarmos sintonizados sobre o assunto, deixo aos meus caros leitores já aqui em baixo o filme de apresentação do projecto Biotope Aquarium:

 

 

Ora o projecto Biotope Aquarium está agora a fazer crowdfunding através do site Indiegogo, para angariar fundos que lhe permitam produzir suportes multimédia informativos e com um público-alvo à escala global —multi-idioma, portanto —, destinados a educar os aquariófilos sobre os habitats aquáticos naturais de todo o mundo, A ideia é dar-lhes acesso a conhecimentos mais detalhados sobre o ambiente natural das espécies, que lhes permitam replicar com mais fidelidade essas comunidades ecológicas — mais conhecidas por biótopos — nos respectivos aquários domésticos. Para quem quiser saber mais sobre o projecto e as várias formas de participar ou contribuir, o link está aqui em baixo:

https://www.indiegogo.com/projects/biotope-aquarium-project-apps-water#/

Aquário comunitário versus aquário de biótopo

Pessoalmente, não podia estar mais de acordo com a iniciativa de Bleher. Não acho graça nenhuma a aquários comunitários de água doce, onde se juntam várias espécies de peixes e plantas só com base nas cores ou nas formas dos peixes, mau grado o facto de na maior parte das vezes eles terem requisitos ambientais totalmente diferentes. Para mim, sempre que me deparo com um aquário desses fico logo com a ideia de que a pessoa que o mantém deve ser principiante e não deve perceber quase nada do assunto… O que nem sempre corresponde à realidade, também tenho de admitir. Mas são as raras excepções que confirmam a regra…

A realidade é que a maior parte dos aquariófilos começa o seu percurso neste hobby a juntar simplesmente animais e plantas de uma forma aleatória no aquário, decorando-o segundo uma estética pessoal e socorrendo-se muitas vezes de elementos totalmente artificiais. São os chamados aquários comunitários, que na maioria das vezes pouco ou nada têm de natural. Além das vulgares plantas e rochas de plástico, já vi aquários com castelos de plástico, sereias, barcos e até carros afundados. Às vezes até me arrepio… Gostos não se discutem, é certo... Mas já a falta de gosto é outra coisa completamente distinta…

Porém, à medida que vamos aprendendo mais sobre o assunto, quase que diria que a tendência natural é passarmos a tentar recriar os habitats naturais de determinadas espécies, em vez de comunidades que integram peixes e plantas de diferentes partes do mundo. Na minha opinião há um prazer muito mais especial quando observamos os animais a interagirem entre si e com o ambiente que os rodeia como fazem na Natureza… Além de que num aquário de biótopo lhes proporcionamos as condições ideais, tal como os parâmetros de água mais adequados e a decoração que ajuda a manter esses parâmetros estáveis, exactamente como sucede na Natureza. Basicamente, estamos a reproduzir as condições para os seres vivos no nosso aquário terem um ambiente mais saudável. Tão simples quanto isto.

Ou seja, um aquário de biótopo é a criação de um ambiente aquático onde todos os distintos organismos — sejam eles peixes, camarões, caracóis ou plantas — têm ao dispor as melhores condições para formarem uma comunidade verdadeiramente biológica, interagindo entre si e dependendo uns dos outros num micro-ecossistema que tenta ser a replicação mais próxima possível do que encontrariam no ambiente natural (tal e qual como se estivéssemos a ver um programa da National Geographic Wild ao vivo, só que este foi criado na nossa casa…) Com isso, todos os seres vivos dentro do nosso aquário passam a ter um comportamento natural e a recompensar-nos mostrando as suas melhores cores e reproduzindo-se com muito mais frequência. Para um aquariófilo consciencioso, é a simbiose perfeita entre a pesquisa científica e a paixão pelo aquário. Algo a que eu me costumo referir como aquariologia (ciência) e já não simples aquariofilia (lazer)…

A história por detrás do movimento

Segundo Heiko Bleher e Natasha Khardina, os dois principais mentores do projecto, tudo terá começado em Setembro de 2000, durante a feira semestral Zierfische & Aquarium, realizada em Duisburg, na Alemanha. Eles foram convidados pelos membros do clube de aquários belga De Zilverhaai para jantarem num restaurante italiano e discutirem a organização de um novo evento chamado AquaXpo, que acabou por se realizar em Hasselt, na Bélgica, um ano depois. Heiko concordou em ajudá-los e propôs-se decorar 23 aquários biótopos. O problema é que ele tinha uma agenda muito apertada e só iria dispôr de 5 dias para os montar… Foi uma tarefa ciclópica, mas Heiko lá conseguiu, com a ajuda de Natasha, decorando os aquários durante o dia e sofrendo de terríveis ataques de malária durante a noite, que não o impediam todavia de voltar a trabalhar de manhã.

Embora o resultado desse trabalho não fosse aquários perfeitos do ponto de vista estético e artístico — pelo menos segundo os padrões estabelecidos por Takashi Amano (o japonês “pai” do chamado “aquário natural”, conceito que não se confunde com o aquário de biótopo, pois raramente coincidem…) — esses aquários transmitiram uma boa ideia aos visitantes sobre como pareciam os correspondentes habitats naturais, os autênticos. Os visitantes do evento entenderam que num aquário de biótopo os habitantes sentem-se instintivamente muito mais protegidos, reconhecem os arredores e comunicam com as outras espécies, que reconhecem, tal como estão acostumados a fazer nos habitats originais.

Seguiram-se várias outras exposições semelhantes na Alemanha, Itália e Estados Unidos, todas com uma taxa de sucesso muito significativa. Depois desses eventos Heiko foi convidado para decorar aquários de biótopo na China, na Polónia, em Espanha, na Suécia, na Indonésia, na Austrália, nos Emiratos Árabes Unidos, na Índia, na Noruega, na Dinamarca, em França, no Canadá e em muitos outros países. O projecto Biotope Aquarium começou a ganhar forma como movimento, sobretudo por se tratar de passo natural e inevitável no desenvolvimento do hobby. Os aquários de biótopo modernos vieram unificar o conceito da beleza estética do Aquascaping com as pesquisas científicas indispensáveis para os aquariófilos conseguirem reproduzir uma expressão documental da Natureza, retratando lugares que poderão até vir a desaparecer dentro de pouco tempo.

A consciencialização subjacente ao projecto

A realidade é que nós, aquariófilos, temos de nos consciencializar de que os lugares de onde provêm muitos dos nossos peixes e plantas estão a desaparecer a um ritmo incrivelmente rápido. Se estivermos atentos ao que se passa no planeta, vemos que é urgente tomarmos todos medidas mais ecológicas, pois a pressão dos interesses modernos sobre os recursos do planeta — as agendas políticas, as crises económicas, a globalização, a poluição, o aumento da populações, etc — está a ameaçar o equilíbrio do mundo tal como o conhecemos. E a água doce é provavelmente um dos recursos naturais mais ameaçados…

Heiko Bleher faz questão de salientar que a água doce constitui apenas 1% da superfície do planeta e que, incrivelmente, mais de 40% de todas as espécies de peixes conhecidas vivem nesse 1% . Ora o ser humano é uma das espécies que não conseguiria sobreviver sem água doce. Ou seja, enquanto espécie continuamos a destruir um dos fundamentos da nossa própria vida, que são os habitats de água doce. E estamos a fazê-lo em todo o planeta. Nem os glaciares — as reservas mais antigas de água doce — escapam a este ritmo destrutivo. É absolutamente evidente que precisamos de mudar urgentemente a nossa abordagem, a nossa consciência colectiva sobre a questão.

O plano a longo prazo do projecto Biotope Aquarium é educar as pessoas, começando pelas mais novas, sobre a importância da conservação da água doce e de tudo o que vive nos seus habitats. Mas existe outro plano, este a curto prazo: antes que seja tarde demais, é urgente pesquisar e documentar cada um dos habitats de água doce em detalhe. Há muito poucas pessoas que já começaram a fazer esse trabalho há décadas. A viajarem por todo o mundo para fazerem pesquisa, enfiando-se de cabeça em cada canto dos rios, dos lagos ou mesmo de charcos de água, para procurarem peixes, plantas ou crustáceos e fotografá-los e anotar cada detalhe, por forma a documentarem todas as formas de vida aquática. Heiko Bleher é uma dessas pessoas. Quanto a mim, estou-lhe extremamente agradecido por isso.

Cumprimentos

Editado por josegmoreira
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